“Estórias de um arquivo judicial – A Grande Devassa – 1820-1920”, de José Avelino Gonçalves, Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Castelo Branco, é uma obra editada pela Cooperativa Trevim, com lançamento marcado para dia 3 de outubro, no Museu Etnográfico Louzã Henriques, no âmbito do 53.º aniversário do jornal
Trevim (T): Fale-nos um pouco desta obra.
José Avelino (JA): É o culminar de um trabalho que tenho feito de investigação e recolha de processos antigos no sótão do Tribunal da Covilhã. Há volta de dois ou três anos descobri um conjunto de cerca de mil processos amontoados, que ninguém sabia de onde eram nem como é que estavam ali. Como tenho uma veia de arqueólogo… antes de ser juiz, gostava de ser arqueólogo e gostaria de seguir História, que acabei por não seguir, tive a ousadia de me embrenhar naquele conjunto de processos a cheirar a bolor, cheios de pó, muitos deles estragados. O livro acabou por daí nascer, um conjunto de estórias (nascidas dos processos) de conflitos reais que aconteceram no séc. XIX, mas com um toque pessoal, para as pessoas conseguirem ler, um toque ligeiramente romanceado, a cheirar um bocado às novelas de Camilo Castelo Branco (risos).
T: Porquê “A Grande Devassa”?
JA: “Devassa” têm a ver com conflito, com processo, com investigação. “A Grande Devassa” porque são vários processos ao longo de cem anos. Estórias com “e”, com algumas personagens criadas pelo autor, de forma de motivar a leitura. Começa com a história de uma senhora que tem gado e vende lã para fábricas da Covilhã e que precisa da autorização do juiz para poder levar o gado desde a Serra da Estrela, que está a ficar com neve e já não tem pasto, para Idanha-a-Nova, para fazer a transumância. O livro começa em 1820, época em que os liberais ocupam o espaço ideológico português, e vamos até 1920, portanto são 100 anos de processos e por isso “A Grande Devassa”.
Demorei cerca de dois anos e meio a fazer esta investigação, mas ainda não acabei. Se a coisa correr bem no lançamento deste livro e se as pessoas gostarem da prosa e das figuras, que são retiradas, a maior parte delas, dos processos originais, sairá depois um segundo livro com histórias idênticas a esta de meia dúzia de processos que ando a investigar.
Além disso muitas delas têm sido já publicadas, na forma de crónicas, em jornais, incluindo no Trevim, mas também no Reconquista, o Fórum da Covilhã e o Notícias da Covilhã.
T: A sua filha fez algumas das ilustrações.
JA: Sim, a Cláudia, que acabou o curso de Arquitetura, fez cerca de nove ilustrações, têm o cunho dela, e as restantes fomos associando com algumas imagens dos processos. Ela gosta disto, e eu, como pai, naturalmente teria que a convidar para fazer parte deste livro, que me vai marcar a mim, por ser o primeiro livro, mas a ela também.
T: Qual a importância de tornar públicas estas histórias?
JA: Desde logo enriquecermo-nos mas, mais do que isso, corrigirmos algumas notícias históricas. Por exemplo, tínhamos um convento de São Francisco e falava-se que no tempo da Revolução Liberal teria sido retirado aos abades e aos frades e que lá instalaram desde logo uma fábrica de lanifícios. Descobri que não foi assim. Antes disso esteve lá acomodado, durante quase um ano, um regimento militar do exército e não havia essa informação. Ou seja, além de nos associarmos à cultura e à informação histórica, também já temos corrigido alguma dessa informação aqui na região.
T: Dos processos que encontrou, algum se destaca?
JA: A justiça que faz parte do livro e aquela a que tenho acesso aqui (o resto dos processos já estão no arquivo distrital), é a justiça do séc. XIX e não tem nada a ver com a que temos agora. Naquela altura havia uma justiça quase da facada e do tiro, agora não nos podemos queixar, nem da justiça nem das instituições no geral, nunca funcionaram tão bem como agora, em que são garantidos os direitos e garantias do cidadão. Nessa altura, e principalmente naquela época terrível, das Guerras Liberais, da luta dos Dois Irmãos, vizinhos matavam-se uns aos outros por causa de ideologias. A justiça andou aqui no meio desta confusão e mesmo assim foi funcionando, resolvia os conflitos, mesmo sem as atuais garantias processuais.
Uma das histórias que até vem no livro é sobre um grupo de militares que deserta da Covilhã em 1837, na altura da Guerra dos Dois Irmãos, e querem fugir para Espanha porque D. Miguel, do partido absolutista, é aclamado em Espanha também como Rei de Portugal. Tentam fugir mas são apanhados e depois julgados de uma forma muito parcial porque o próprio júri que os julgou era tudo gente que tinha costela liberal. Portanto logo à partida, os indiciados estavam tramados, condenados.
T: Como é que se divide entre o cargo de juiz presidente e a tal veia de arqueólogo?
JA: Neste momento, já vou no 7.º ano nesta função, e já deveria ter regressado ao Tribunal da Relação de Coimbra, que é o meu lugar. Esta comissão de serviço permitiu-me gerir todos os tribunais do distrito de Castelo Branco, e logo de início uma das coisas que quis foi trazer a cultura à justiça e associar a justiça à história do sítio onde estou. Uma das primeiras exposições, a que demos o nome “O Traço da Justiça” e que percorreu toda a comarca, foi feita em parceria com o 50.º aniversário do Trevim, e foi um sucesso.
Faz parte da minha função como juiz presidente da comarca, trazer a cultura aos tribunais, aos espaços que normalmente só se utilizam para diluir conflitos. Tem funcionado muito bem, as pessoas têm gostado. Estamos a levar à história local informações que nem as pessoas, nem as câmaras, nem as instituições tinham e que de facto estavam ali fechadas a sete chaves.
0 Comentários