“Ri-se a Mãe Rússia”
Bruno Fernandes (maryotshka@gmail.com)
A estreia de “The death of Stalin” (“A Morte de Estaline”) acaba por passar despercebida principalmente porque chega a Portugal com quase um ano de atraso em relação ao resto do mundo. Porque o pedigree é irresistível: um elenco que inclui um ex Monty Python e Steve Buscemi chama sempre a atenção, mas na cadeira de realização está Armando Ianucci, nome conhecido daqueles que seguem a boa televisão actual. Criador de “Veep”, sátira contundente da política norte-americana onde Julia Louis-Dreyfuss se tem fartado de ganhar Emmys como uma vice-presidente com mais ácido do que Peta-Zetas, Ianucci é um britânico que se tornou famoso em terras britânicas com “The thick of it” (que mais tarde originaria a sua primeira obra como realizador, “In the loop”). A série era protagonizada pelo monstruoso Malcolm Tucker, um director de comunicações ao serviço do Governo britânico, que se tornou um dos mais icónicos personagens televisivos deste século. Ianucci tornou-se num dos grandes sátiros da política moderna, misturando acutilância e uma linguagem de abuso e violência, duas características presentes em “The death of Stalin”.
O melhor do seu novo filme não é ser doentiamente divertido (que o é, em doses industriais): é não cobrir com risos e piadas o horror real do regime estalinista, sem fugir ao que significava privar com o tirano russo, viver na sua sociedade, estar sujeito aos caprichos dos seus humores. Partindo de uma morte que ainda demora a acontecer na metragem do filme, cria um ambiente onde o riso acaba por ser não apenas natural, mas necessário, como se fosse uma reacção de escape da realidade.
Se anteriores obras de Ianucci dependem muitas vezes da incrível criatividade da veia insultuosa dos personagens – Malcolm Tucker é uma criação sublime de veneno e fúria – este filme é coeso, compacto, com uma narrativa bem delineada e que se ancora em acasos ridículos, comportamentos políticos hipócritas e tudo o que faz de Ianucci um dos melhores comediantes políticos dos últimos anos, precisamente por entender que uma boa parte do discurso e do comportamento políticos não é ideológica: é delícia da contradição humana e de um espaço imenso para abraçar o ridículo e a hipocrisia. Ajuda que um elenco que mistura actores norte-americanos e britânicos (alguns como Michael Palin e Paul Whitehouse são instituições) a interpretar versões de gente real no meio do caos da transferência de poderes esteja no ponto. É um grande filme, um dos melhores do ano transacto; e isto não é propaganda.
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